sábado, 27 de julho de 2013

Assalto

Mariana passeava pelas ruelas estreitas do bairro velho, à procura de puxadores antigos.
Adorava o bairro velho! Sentia nas paredes descoradas as histórias de tantas almas que por ali tinham passado. As janelas com cortinas de renda, as portas entreabertas que deixavam ver as íngremes escadas de madeira por ali acima, as velhotas eternamente vestidas de preto, tudo aquilo a encantava.

Atendeu a chamada do telemóvel quando este tocou – o amigo saudou-a, disse uma graça, ela riu-se. Sentia-se bem, como se sentia sempre quando perambulava pelas ruazinhas cheias de História e de histórias. Estava quase a chegar à lojeca simpática e repleta de artigos, velhos uns, antigos outros. Curiosa esta distinção, pensou: é bom ser “antigo”, é mau ser “velho”; velho é imprestável, passado do prazo de validade, inútil, ao passo que “antigo” é precioso, algo que cumpriu o destino dos anos e se mantém útil e bonito.

Entrou e levou imediatamente uma pancada. Soltou um grito abafado, entre assustada e surpreendida: não estava realmente magoada, tinham-lhe batido com um saco de plástico cheio de qualquer coisa. A mulher que lhe batera com tão inusitado objecto fugiu, assim como o acompanhante, um macho jovem e ágil.

Mariana ficou interdita, sem perceber bem o que tinha acontecido – estava encharcada. Cheirou a manga molhada, meio a medo: não cheirava a nada. Passou as mãos pelo cabelo a pingar e cheirou-as: nada. Era água, água limpa.

Relanceou os olhos pela loja e viu o lojista no chão a ser assistido por uma rapariga - “o que foi, o que aconteceu, estão feridos?” e era a história simples de um assalto atabalhoado. O casal tinha entrado, ameaçaram com a faca, queriam dinheiro e valores, o homem tinha respingado e levara uma facada; entretanto ela tinha entrado na loja a falar alto ao telemóvel e eles tinham fugido.

O homem estava ferido mas sem gravidade, a moça já estava a chamar a polícia para pedir ajuda e Mariana pensou para si própria que ninguém ia acreditar nela: tinha interrompido ladrões de naifa em punho em plena função e que é que acontecia? Batiam-lhe com um saco de água limpa. Um saco de água?!?


Quando a mãe entrou em casa, o miúdo tristonho deitado na cama não disse nada. Prostrado, os olhos mortiços eram olhos tristes de quem não tem nem vitalidade nem esperança.

A mãe aproximou-se, sentiu-lhe a testa com a mão, beijou a pequena bochecha e foi á cozinha improvisada no outro lado da divisão molhar o pano em água da torneira para lhe esfriar a temperatura.

Depois foi esvaziar a panela, enchendo meio prato de uma sopa rala e voltou para colocar o pano na testa febril e sentar-se na cadeira ao lado do doente, de colher na mão; mas a criança recusava-se a comer, como já tinha acontecido de manhã.

- Come, filho, senão não ficas bom. Come só um bocadinho, vá lá…

E o miúdo nada, os olhos sofridos e a boca fechada para aquele líquido ralo e de cheiro estranho.

- Tens de comer, filho… Se comeres a sopinha toda, amanhã trago-te um peixinho de aquário, queres? Um peixinho azul. Tentei trazer um hoje mas o saco rebentou e o peixinho fugiu… Amanhã volto lá e trago-te um, vais ver, um peixinho azul com barbatanas compridas, pomos ali naquele frasco grande. Vou trazer com muito cuidado para não rebentar o saco outra vez, está bem? Mas tens de comer a sopa, vá lá…

Realidades

“Isto não é real” pensou subitamente enquanto limpava as lágrimas com o lenço já encharcado, “não é real, vem o vento e seca tudo, é como se nunca tivessem existido”.

“Não é real, são hormonas, é química, um desequilíbrio qualquer entre ácidos e bases, afinal somos todos uns conjuntos de química com bonitas caixinhas coloridas, pelo menos alguns de nós são bonitas caixinhas, mas o que interessa é que somos todos assim, equilíbrios vacilantes entre sais e vitaminas e… e… coisas, não é real, não é real, recompõe-te”.

As lágrimas caiam sem hesitação, inocentes de pensamentos, escorriam pelo rosto de dentes cerrados até o seu caminho ser interrompido pelo lenço húmido.

 “A vida é assim, não há volta para trás, é assim e vai ser assim até ao fim, não adianta nada essa parvoíce, recompõe-te, recompõe-te, se te vêem assim ficam tristes e, se nada podem fazer, porque é que hás-de entristecer quem gosta de ti? Isto não é real, vem o vento e seca tudo, é como se nunca tivesse existido. Recompõe-te, anda, isto não é real e magoa a quem não queres entristecer, recompõe-te, põe o lenço a jeito do vento, com o sol está quase seco, vês? Não é real, não é real, é como se nunca tivesse existido”.

Encolhida no banco do jardim público onde nunca passava ninguém, dobrava e desdobrava o lenço de papel, segurava-o entre dois dedos ao sol e à brisa, à espera do milagre de secagem que daria razão à voz interior.

"Há meses que é assim e agora é que te deu para isto? Que te dói, o gato que passou, o cão que te cheirou, as folhas a abanar na árvore? Nada têm a ver com nada e as coisas são como são. Esse peso não é real, são enzimas, hormonas, o sol põe-se todos os dias e tu não choras por isso"

 “Não adianta, choras, choras e depois? Fica tudo na mesma, é a vida e podia ser pior, tudo pode ser pior do que é agora, já sabes isso. Recompõe-te, recompõe-te, isto não é real, são os sais, as hormonas, sei lá, é uma coisa qualquer, não é real, não é real, vem o vento e seca tudo, não é real, recompõe-te, tens de ir para casa”.

Quando chegou a casa, sorria. A filha não deu por nada.

Mais vale rir que chorar

O seu sorriso era uma ode à vida.

Quem a via nunca suspeitaria das dores que já lhe tinham atravessado o peito, a filha adolescente desfigurada e morta por um acidente estúpido, o marido que não tinha aguentado o desgosto e tinha fugido para parte incerta deixando-a solitariamente desvastada pela mágoa e culpa, as pequenas e sempre insatisfeitas necessidades diárias de compreensão e a constante angústia de não ter sido capaz de proteger quem estava a seu cargo...
Nao, quem a conhecia e nada sabia do seu passado limitava-se a ficar alegre na sua presença e, mais tarde, comentar descuidadamente como era contagiantemente alegre, aquela velhota.

A tudo sempre fizera frente com um sorriso.Tinha a teoria arreigada que mais valia rir que chorar e, já que não possuia alegria para si própria, podia pelo menos fazer os outros ter alguma.

Sorria. E por alguma magia desconhecida o seu sorriso, tão artificial como uma perna de pau, era igualmente eficaz – as pessoas sentiam-se quentes e acolhidas naquele sorriso, libertavam-se das suas preocupações por um momento, sorriam de volta e, por momentos, tudo estava certo no lugar certo, não havia dúvidas, medo ou culpa nas pessoas que a rodeavam. Uma alegria serena nascia por si própria naquele ambiente particular e toda a gente se sentia bem.

Menos ela, claro. Mas ela nunca se sentia bem, nunca era livre, por isso não tinha importância – aquilo que nunca é diferente não tem qualquer interesse.

Toda a gente gostava dela. Um gostar sereno como o seu sorriso, alicerçado nas lembranças dos momentos sempre alegres e protegido do esquecimento pela presença constante da suave companhia; ninguém vivo se lembrava de lhe ver um rosto sério ou uma expressão fechada.
Por isso mesmo, nunca ninguém se interrogava se seria feliz, se teria as suas necessidades satisfeitas, se precisaria de algum carinho... Que diabo, quem sorri um sorriso assim não precisa de nada, tem para si e para dar a quem passa!

Quando se sentiu realmente mal, apanhou a camioneta para uma cidade distante; não suportava ser, mais uma vez, incapaz de proteger contra o mal.
Saiu a meio de percurso, perdeu deliberadamente a carreira e, muito cansada, afastou-se lentamente a pé pela berma da estrada.

O relatório policial referia como estranha a expressão do rosto, “sorrindo como se cumprimentasse alguém”, embora não houvesse qualquer vestígio de terceiros.
Mas o médico legista não conseguiu evitar um pequeno sorriso quando se virou para o cadáver e tratou o corpo morto com um respeito inesperado.

Mais uma vez, a velhota de espírito indomável vencia a adversidade com um sorriso.

Finalmente

O rapaz chorava, infelicíssimo.

O seu desgosto era profundo e completo, desesperado. Estava fisicamente incapaz de recordar outros desgostos e a sua recuperação; não podia reconhecer que o tempo, mesmo quando não cura, atenua o sofrimento para níveis que a biologia pode suportar sem por em causa a sobrevivência.
Portanto, estava extremamente infeliz e por toda a eternidade, que é a duração do presente para os muito jovens.

Toda aquela miséria e desespero eram estranhamente doces; a sua juventude inocente também desconhecia que o sofrimento pode viciar, tal com a excitação, o amor ou mais duramente, a heroína.
Não, não sabia disso - mas sabia que não merecia a dor que lhe apertava o peito, a angústia, o futuro inexistente, não merecia nada disso. Sempre fora uma pessoa decente, um “homem bom”.
Mas o mundo não reconhece os homens bons, trata-os pior do que trata os maus. Levantou-se e com a mão, limpou as lágrimas. Ah! A vida não merecia a pena de ser vivida!

Pegou na caçadeira, entrou pelo colégio adentro e matou tudo quanto viu mexer: não sofreriam como ele, não! Era demasiado doloroso, crianças tão inocentes e frágeis não mereciam tal desespero.

Quando já tinha acabado com todo o sofrimento potencial, apontou a arma para si próprio e premiu o gatilho, matando o sofrimento actual.

A dor desapareceu. Finalmente



Dezembro 2012

Instantâneo urbano

A porta do carro da frente abriu-se e uma jovem muito bem vestida e de botas com salto de agulha saiu furiosa e começou a insultar o condutor da frente; da boca bem pintada saíam palavrões dignos de um carroceiro irritado. O condutor da frente também saiu do carro, um homem maduro e com cara de poucos amigos.

A rapariga dos saltos de agulha deu um pontapé na roda do carro da frente e o homem avisou-a:

- Ó grande vaca, se pensas que eu não bato em mulheres, andas enganada!

Joana abanou a cabeça, atónita. O João riu-se.

- Achas que se vão pegar à pancada?
- Sei lá! Mas ela bem merecia...
- Mas é uma rapariga!
- E então?
- Tu eras capaz de me bater?!
- A ti não mas não é por seres rapariga, é porque não te portas assim.
- Queres dizer que se fosses tu ali à frente batias-lhe?
- Claro! Ela deu um pontapé no carro, não deu?
- Foi no carro, não foi no homem...
- É a mesma coisa.

O semáforo mudou de cor e imediatamente se fez ouvir a cacofonia das buzinas, protestando contra a cena que antes entretivera os condutores mas que agora lhes impedia a passagem e atrasava o destino.


Joana sentia um frio desagradável a escorrer pela espinha mas não disse mais nada. Não queria saber mais.


2012

Vida de cão

O carro chiou, as rodas a protestarem em voz alta a curva apertada.

O bicho, coitado, depois de tanto tempo a perceber que era mais seguro atravessar na passadeira e mais tempo ainda para descobrir que a passadeira não era sempre igual (umas vezes tinha um apito que fazia parar as coisas - embora se mantivessem a rugir baixinho, próximo - outras vezes nem parecia que tinha riscas) assustou-se. Deu um salto para a frente e foi por um cabelo que o carro não lhe passou por cima.

Esqueceu imediatamente o sucedido, tinha a certeza que tinha atravessado as riscas na altura certa, a coisa é que não se comportara como devia. Não interessava, havia assuntos muito importantes a considerar, como por exemplo estar na altura do gordo do restaurante vir por os sacos na rua.

Cheiravam tão bem, aqueles sacos! Era estúpido meterem aquilo nas caixas-que-nunca-se-abrem mas as pessoas são muito estranhas, não valia a pena pensar nisso. O gordo do restaurante também cheirava bem, a molho de carne, manteiga e outras coisas. Além disso tinha sempre comida para lhe dar, era importante estar à porta quando vinha guardar os sacos que cheiravam bem nas caixas-que-nunca-se-abrem.

Ultimamente o gordo do restaurante tinha também um cheiro estranho, um odor desagradável que o cão não identificava e que lhe trazia inquietação; mas havia sempre comida de modo que continuava a vir. Era muito importante, a comida, era muito, muito importante.

Chegou à porta e sentou-se. O gordo havia de vir.

Olhou em volta, um pombo saltitava a meia distância. Não se levantou, já sabia que não o apanhava; os pombos eram muito interessantes, nunca tinha apanhado nenhum mas de certeza que saberiam bem.
Uma mulher andava muito depressa em sua direcção - desviou-se para próximo da parede para ela passar, as pessoas eram muito estranhas e algumas eram perigosas, era muito importante estar com atenção.

Estava com fome, o tempo estava certo. O gordo havia de vir, com comida.

A porta abriu-se e o gordo veio, com dois grandes sacos que colocou nas caixas-que-nunca-se-abrem. Os sacos cheiravam bem, muito bem, como sempre, era uma pena aquilo das caixas-que-nunca-se-abrem.

O gordo entrou e tornou a sair com a comida. Deitou-a para cima de um papel, como sempre e a comida cheirava bem, muito bem. Comeu tudo, delicioso, mesmo delicioso, é pena não haver mais mas abanou o rabo em agradecimento e o gordo sorriu. O odor desagradável estava mais forte, espalhava maior inquietação, o gordo estava menos gordo, teria alguma coisa a ver?...

O gordo voltou a entrar e a porta fechou-se. Era tempo de ir ao jardim perseguir os pombos e ouvir o velhote de casaco preto a rir-se.


Havia três sítios com riscas para passar e no fundo dele a inquietação levantou-se: as coisas portar-se-iam bem?



2012

Aprendizagens

Joana ria, os dentes certinhos à mostra. Tinha descoberto muito cedo, na face menos severa do pai e nos lábios menos descaídos da mãe, que aquela alegria desorientava quem a via e levava as pessoas a serem amáveis.
Portanto, Joana ria. Mesmo quando dentro de si tudo se encolhia e chorava, Joana ria; tinha aprendido muito bem a lição e nem tinha demorado muito tempo – aos quatro anos já Joana ria aquele seu riso especial.
Foi por causa disso que mesmo nos tempos difíceis e sem dinheiro para nada Joana tinha sempre preferido passar pior do que faltar ao dentista – os dentes tinham de ser brancos e certos se não o riso, em vez de atrair, repelia. Não há pior que dentes amarelos ou tortos a olharem para nós, cogitava ela.
A par do domínio exímio e cada vez mais fácil da técnica, Joana tinha também aprendido a reconhecer aqueles que dominavam outras técnicas de manipulação pessoal, como um sorriso quente com palavras agradáveis e inconsequentes; ela ia à luta e retribuía com o riso aberto e gargalhante que normalmente empatava a situação.
É muito difícil cortar sem piedade um riso aberto, com os dentes todos à mostra. Ela sabia, toda a vida batalhara dessa forma... Mesmo quando perdia, as perdas eram controladas pois quem ganhava tinha tendência a deixar uma pequena porta onde o riso podia ainda existir – é realmente muito difícil ao Homem aniquilar um riso aberto.
Joana não via o que o seu riso traía a honestidade, a franqueza de uma alegria genuína. Também não reparava no que ficava para trás quando ganhava alguma coisa; acreditava sinceramente que todas as pessoas o fariam, se pudessem – acreditava que só quem não pode não faz, seja o que for, desde que pessoalmente vantajoso. E Joana, com aquele riso especial, podia.
Na noite em que foi assaltada, Joana defendeu-se; disse isto e aquilo, riu-se com todos os dentes brancos e certinhos à mostra, tentou por todos os meios que conhecia trazer o ladrão à Humanidade que dominava.
Mas o homem estava demasiado sofrido, demasiado pisado, demasiado triste. Mesmo sem nunca ter conhecido a Joana, os olhos do homem reconheceram o riso de dentes brancos e os ouvidos do homem reconheceram o riso cristalino; toda uma fúria incontrolável tomou posse dele, o sofrimento a uivar por vingança, o homem cambaleou ao recordar os tempos em que tinha acreditado na vida, nuns olhos semiabertos e num riso largo e cheio; e a dor que o percorria era demasiada – o assalto era por um dinheirito para o jantar mas agora já só queria aniquilar a dor que lhe apertava o peito. A Humanidade em que Joana nunca pensara revoltou-se.
Joana morreu.
A polícia estranhou o riso aberto que o cadáver ostentava; isso mais o facto da carteira conter os 50€ que o registo do Multibanco demonstrava ter sido levantado à saída do emprego provava que o crime não fora por dinheiro.

Na morte, o riso de Joana traiu-a; continuam à procura de alguém que ela conhecesse.


Agosto 2012

Metro

- Mas tu disseste-lhe? 
(…) 
- Ó pá, mas se não lhe disseste como queres que ele adivinhe? 
(…) 
- Eu sei, mas tu também tens que ser mais calma, começaste logo a mandar vir, não é? 
(…) 
- Sabes muito bem que ele gosta de ti, os homens são mesmo assim, ficam logo ouriçados (ouriçados?! Caramba, não ouvia esta expressão há anos) 
(…) 
- Então e agora? 
(…) 
- Tens de ter calma. Ele 
(…) 
- Sim mas tu também tens de ter calm 
(…) 
- Não, não estou a tomar o partido dele, só te estou a dizer q 
(…) 
- Sim, estou no metro 
(…) 
- Não queres pensar melhor? Diz-lhe que queres um tempo e depois 
(…) 
- Não, Tita, tu é que é minha amiga mas eu ach 
(…) 
- Ó Tita mas tu sempre disseste q 
(…) 
- Os homens são assim, tens de explicar porque é que ficaste chateada… 
(…) 
- Mas tu não lhe disseste! 
(…) 
- Ó pá, mas o gajo não adivinh 
(…) 
- É a mãe dele, que é que tu dizias se fosse ao contrário? Até o matavas se ele dissesse que a tua m 
(…) 
- Não, Tita 
(…) 
- Está bem mas olha que acho que estás a fazer asneir 
(…) 
- É claro que sou tua amiga, é por isso que te estou a dizer 
(…) 
- Estás parva? Sabes muito bem que para mim o Pedro é que conta 
(…) 
- Eu quero lá saber do gajo, acho é que estás a ser injust 
(…) 
- Olha, vai-te lixar. Tu nem sabes o que é ser amiga de alguém! 

Desligou o telefone, furiosa. Mas não pude deixar de notar a grossa lágrima que lhe escorreu pela bochecha. Quando saí, ela teclava furiosamente no telemóvel e eu pensei “Coitada da miúda!” 

Estava um calor de rachar, quando saí da estação de Metro.


Junho 2012

Conto sem ponto

Jazia deitado na cama, enrolado sobre si próprio. 

Mergulhado em sofrimento amorfo, sem esperança, imerso num cansaço entranhado nos ossos, um desânimo cuja profundeza não tinha medida. Não estava desesperado, o desespero leva à acção; estava... desesperançoso, um estado em que tanto a esperança como a falta dela não têm lugar. 

Tinha os olhos secos - o choro é uma reacção à tristeza mas a tristeza requer razão e ele estava para além disso. O cérebro tinha-se ausentado num desligamento automático provocado por mecanismos de segurança interna - se pudesse pensar, teria já feito asneira - a natureza é sábia. 

Ouviu ranger a porta mas tudo o que não exigisse uma acção imediata e inadiável era trivial e podia ser ignorado. Ignorou o ruído. 

Assim esteve, muito e muito tempo. Quando a sede se tornou inadiável, levantou-se lentamente e foi à cozinha. 

A porta estava entreaberta e em cima da mesa estava uma pétala. Pegou-lhe: estava murcha mas cheirava bem. Inexplicavelmente sentiu-se melhor, capaz de aceitar que nunca poderia providenciar por inteiro. 

Desde que não tivesse medo nem egoísmo, que não colocasse em outros o próprio peso ou culpa, que não renegasse passado ou futuro, que não fugisse à própria incapacidade, a necessidade que não podia satisfazer seria como aquela pétala: murcha mas com aroma a paz. 

Nunca mais fecharia a porta da cozinha. 

Maio 2012

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Premonições

Uma aragem fria varre as ruas desertas.

As folhas secas dançam a dança louca dos objectos inanimados e os animais livres encolhem-se de medo e frio.

A figura negra avança devagar e traz com ela um presságio agourento, abafado, uma tragédia à beira de acontecer. Os animais encolhem-se mais, reduzindo ao máximo a sua presença – se pudessem, desapareceriam por algum tempo.

Há luz mas não se vê o sol, aprisionado nas grandes nuvens pesadas, cinzentas e tristes. Não chove e a promessa de vida que qualquer água contém não alivia o prenúncio de desgraça.

Ao longo da rua as árvores erguem ao céu os esguios braços nus, quais figuras pedindo compaixão a um qualquer deus maldoso. Longas filas de silenciosas suplicantes, tristes e sem esperança, tornam a rua por onde avança a figura um caminho de desolação.

Os pássaros desapareceram. Não há um par de asas no ar e nem um pipilar tímido distrai a atmosfera pesada.

A figura pára. Será que sente, ela própria, a angústia que o seu movimento lento e inevitável espalha? Terá estremecido? Será de frio, será de medo, o seu estremecer?

A silhueta dobra-se um pouco, sobre o malmequer selvagem que, teimoso como só um selvagem pode ser, medrou entre as pedras do passeio. Um pequeno malmequer amarelo que floresceu contra tudo e contra todos, arrancado agora com um gesto seco.

A figura abre o capote que a cobre, uma peça estranha, escura e pesada. Abre pouco, apenas o suficiente para meter a mão com o malmequer. Lá dentro, a criança suspensa sorri e estende a mão, pegando no pé da flor com um cuidado anormal para a tenra idade. A figura fecha novamente o capote impedindo o frio de entrar.

No céu esvoaça agora uma andorinha, sabe-se lá vinda de onde.

domingo, 3 de junho de 2012

A dança

Dançai, dançai
A dança da alegria
No parque sem crianças
Na terra vazia

Dançai, dançai
A dança da vitória
No sonho sem gente
Na morte sem história

Dançai, dançai
A dança dos vivos
Na fonte sem água
Na jaula dos cativos

Dançai, dançai
A dança dos clamores
No chão sem pedras
No bosque sem flores

Dançai, dançai
Com energia
O futuro já não vem
Venha pois a magia

sábado, 26 de maio de 2012

Caca de cão

Sentada no banco do jardim, chorava.
As lágrimas caiam em fio sem soluços. Nada as impedia, as mãos enclavinhadas no colo na posição centenária de estoicismo.

A postura era rígida mas discreta: nenhum dos passantes lhe dirigiu um segundo olhar. 
A silhueta madura não atraía os jovens e o drama passava despercebido aos outros, aos solidários como aos abutres; talvez fosse essa a razão pela qual a postura se lhe tinha tornado familiar, uma defesa contra intromissões inconsequentes.

Os olhos abertos perscrutavam sem ver a linha do horizonte, uma coisa feia de prédios velhos e sujos. Não a via, os olhos só viam o que se tinha perdido, sem esperança e sem remédio. Sentia-se velha e trôpega, no dia do seu meio centenário
O seu tempo fora julgado sem préstimo, toda uma maneira de proceder, um conhecimento e uma experiência, toda uma maneira de estar, todas as escolhas da sua vida, tudo ajuizado sem utilidade. Como caca de cão.

Quando não há capacidade para todos no bote, lança-se ao mar os que pesam mais do que o que valem na travessia. Tinha sido lançada ao mar e a pena por si própria era maior do que alguma vez pensara possível.

O pombo aproximou-se, o olho vermelho a avaliar a possibilidade de haver pão naquela figura pesada. Voltou a cabeça para ver com o outro olho, igualmente vermelho de saúde; mas não havia dúvida que dali nada viria, era demasiado agourenta, demasiado escura, a figura.

As lágrimas caiam em fio sem soluços. Nem viu o pombo que, também ele, a ajuizara sem valor.

domingo, 20 de maio de 2012

Férias

Queria ir para um deserto desértico
Passar umas boas férias
Sem ver ninguém nem ouvir nada
Ao lado do mundo mas sem estar fora dele.
Queria o sossego e o silêncio
Do deserto temporário, a pedido
Uma coisa assim tipo time sharing.
Iria para lá por uns tempos
Gozar umas férias
Da vida barulhenta;
Escutaria o silêncio
Viveria o vazio
E choraria os males todos
Em lágrimas silenciosas.
Quem sabe assim
Ficaria consertado
O meu cansaço!
Poderia maldizer a vida
Sem ela me castigar
E teria saudades do mundo
Sem ele me esmagar.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Inocência

A alegria das crianças é dolorosa
Como as crianças riem, santo Deus!
Com que que inconsciência,
Com que inocência,
Sentem permanente o momento alegre!
E nós sabendo que amanhã vai chover,
Sabendo que amanhã o jardim estará fechado,
Nós sabendo que amanhã alguém vai morrer,
Ou pior ainda, vai viver desesperado.
Mas as crianças riem com a certeza
Que fará sol e será possível brincar
E que estarão no jardim, outra vez, amanhã!
E riem com a boca toda aberta,
E na sua alegria cabe o mundo todo
E cabem todos os tempos
E cabe toda a gente.
As gargalhadas cristalinas,
Os olhos redondos de alegria,
Os gestos soltos e abrangentes...
Doem-me fundo, fundo, magoam,
Como se aquilo que a vida me ensinou,
Fosse uma traição à sua existência.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A contingência da Vida

O que eu queria era que não fosse hoje

Podia ser amanhã ou ontem, tanto faz,

Mas que não fosse hoje, nem agora.

Era o que eu queria, se pudesse:

Porque hoje está sol

Um dia luminoso e claro

E eu não sei onde estou

Nem sei para onde vou

Quanto mais por onde vou.

Se não fosse hoje

Eu saberia pela certa

Teria imensas teorias

Que explicariam muito bem

Estar eu onde estivesse.

Com toda a certeza

Se fosse amanhã eu saberia

Porque é que hoje estou aqui

Sem saber onde é aqui;

E se fosse ontem o hoje não existia

E eu não estaria aqui seguramente.

domingo, 13 de novembro de 2011

Enquanto houver gente no mundo

Não, o mundo não muda
com tantas lágrimas choradas
O mundo não muda
Com tantos sacrifícios feitos
Não muda
Com tanto amor doado
O mundo não muda.

Enquanto houver gente no mundo
O mundo não muda para a gente.

Mas talvez... Talvez!
Um amor sincero
Um sorriso aberto
Um carinho tímido
Um pensamento escondido
Uma sentença revisitada
Um duvidar do passado
Um passo
Um acenar

Talvez, quem sabe?
Facilitem uma jornada.

Num mundo que não muda
Pode ser esta a mudança.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Paz


Tive um sonho lindo
Com estrelas e sóis
luzes coloridas
Uma voz dulcíssima
cantava sorrisos
suaves alegrias
Não via quem cantava
Mas sentia morna
acolhedora
a sua paz feliz

Acordei e soube
Se posso sonhar
posso fazer

Hélas!

sábado, 13 de novembro de 2010

A cigarra e a formiga


Era uma vez uma Cigarra e uma Formiga.

A primavera era linda e a Cigarra, muito alegre, tocava e dançava o tempo todo.

A Formiga, muito disciplinada, andava ocupadíssima a amealhar para o Inverno que sabia que viria; enquanto a Cigarra dançava, a Formiga carregava bagos de arroz; enquanto a Cigarra cantava a Formiga carregava grãos de milho. E enquanto a Cigarra dormia, a Formiga arrumava a despensa, para lá caber mais.

O Inverno chegou.

A Cigarra, cheia de frio e sem nada para comer, bateu à porta da Formiga e pediu-lhe ajuda. Esta, quentinha e sem fome nenhuma, disse-lhe suavemente:

"Quem te mandou cantar e dançar o tempo todo? Eu, minha cara, passei esse tempo a trabalhar que nem uma escrava para não estar agora na situação em que tu estás. Antes, tu nunca te preocupaste com o teu futuro; agora, eu não vou dividir o meu contigo, pois é fruto de muito sacrifício."

A cigarra ficou espantada.

"Achas que eu devia ter estado a carregar bagos e grãos, em vez de cantar e dançar? Mas assim não haveria alegria, nem música para te acompanhar no trabalho... Assim ninguém se ria nem esquecia por momentos o filho doente. Assim ninguém faria nada absolutamente disparatado, ninguém faria nada absolutamente altruísta, ninguém faria nada absolutamente descontraído... Ninguém faria nada diferente de acautelar a própria barriga!
Desculpa, Formiguinha, desculpa. Sempre te vi tão séria e determinada, não fazia ideia que eras triste. Mas olha, alegra-te agora, alegra-te que tens a despensa cheia, a casa quentinha, já não há nada para carregar; podes agora esquecer o trabalho por um bocadinho."

Esquecidos o frio e a fome e galvanizada por aquela tristeza, dançou e cantou como poucas vezes o tinha feito. Um espectáculo sublime a que nem o facto da formiga ter voltado para dentro e fechado a porta tirou inspiração e brilho.

Terminado o bailado, sorriu através da porta fechada. Tocou novamente à campaínha mas a Formiga não abriu a porta... Foi-se embora. Nunca mais a Formiga soube dela.

Ainda hoje, na Primavera, em toda a aldeia e alguns arredores se dançam e cantam as melodias da Cigarra.
Da Formiga ninguém sabe nada - se calhar está lá, com os que são só seus.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Sete


7 gatas vadias, em 7 ruas esconsas, escondem 7 sardinhas.
Todas as 7 miam desafios ao dia que passa e para todas as 7, o sol se põe indiferente.

Uma é amarela, outra castanha. Uma tem pintas, outra tem riscas; há uma que tem pantufas, outra que não tem bigode e há uma que tem, na ponta da cauda, um tufo espetado. Uma tem pelos compridos e finos, outra tem-nos grossos e curtos; uma tem manchas negras de pelo lustroso e há outra que tem feridas peladas. Há uma a quem faltam unhas e há outra a quem faltam dentes, uma terceira que é coxa. Há mais diferenças, tantas!
Mas todas miam. Todas têm consigo a capacidade de criar o futuro, quer o tenham concretizado quer não; e todas têm, numa rua estreita, 1 sardinha escondida. Não necessariamente para si.

Há 7 carros velozes, em 7 estradas diferentes. Só há um destino, para as 7 gatas vadias.

Mas as sardinhas, ah! As sardinhas têm todas destinos diferentes.
Uma foi comida pelos filhos, outra pelos pais e uma outra ainda por formigas. Houve uma que deu alento a uma outra gata vadia, outra foi devorada por um cão necessitado. E uma foi roubada por quem não precisava.

E há uma que permanece escondida, à espera da sua necessidade.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Cantai a vida que a morte é muda


Cantai a alegria do Sol e a ternura da Lua e, quando nem o Sol nem a Lua se mostram, cantai as nuvens pesadas que nos fazem companhia.

Cantai as folhas do Outono e as flores da Primavera, cantai o riso da alegria e as lágrimas do desgosto; cantai o andar pesado do vagabundo e o gesto solto da bailarina, cantai o picar da vespa e o voo da andorinha.

Cantai a água fresca da nascente no Verão, cantai o fumo da lareira do Inverno, cantai a bebedeira da borboleta e a disciplina da formiga; cantai a inocência do animal que corre e os montes que ao longe se quedam, cantai o ontem que morreu e o amanhã que nascerá.

Cantai o peixe que nada e o pássaro que voa, cantai o vento que sopra e a chuva que molha, cantai o dia que nasce e a noite que cai. Cantai o mundo todo por inteiro, cantai aquilo que é e aquilo que não é; cantai o sonho e o pesadelo que podiam ter sido e não foram ou que podiam não ter sido e foram.

Cantai os que se aproximam e os que se afastam, cantai quem compreendem e quem não percebem, cantai quem ajuda em horas de necessidade e quem foge ao sacrifício, cantai os que vêem e os que são cegos, cantai tudo o que à vossa porta passe. Ou que não passe.

Cantai, que eu não tenho voz.

domingo, 19 de setembro de 2010

Um conto em Setembro


Jazia deitado na cama, enrolado sobre si próprio.

Mergulhado em sofrimento amorfo, sem esperança, imerso num cansaço entranhado nos ossos, um desânimo cuja profundeza não tinha medida. Não estava desesperado, o desespero leva à acção; estava... desesperançoso, um estado em que tanto a esperança como a falta dela não têm lugar.

Tinha os olhos secos - o choro é uma reacção à tristeza mas a tristeza requer razão e ele estava para além disso. O cérebro tinha-se ausentado num desligamento automático provocado por mecanismos de segurança interna - se pudesse pensar, teria já feito asneira - a natureza é sábia.

Ouviu ranger a porta mas tudo o que não exigisse uma acção imediata e inadiável era trivial e podia ser ignorado. Ignorou o ruído.

Assim esteve, muito e muito tempo. Quando a sede se tornou inadiável, levantou-se lentamente e foi à cozinha.

A porta estava entreaberta e em cima da mesa estava uma pétala. Pegou-lhe: estava murcha mas cheirava bem. Inexplicavelmente sentiu-se melhor, capaz de aceitar que nunca poderia providenciar por inteiro.

Desde que não tivesse medo nem egoísmo, que não colocasse em outros o próprio peso ou culpa, que não renegasse passado ou futuro, que não fugisse à própria incapacidade, a necessidade que não podia satisfazer seria como aquela pétala: murcha mas com aroma a paz.

Nunca mais fecharia a porta da cozinha - abençoado visitante, o que assim lhe devolvia a vida.

sábado, 12 de junho de 2010

Conto moderno


Com um sorriso simples, conta a sua vida: as dívidas do pai que teima em pagar com o seu ordenado exíguo, o irmão que se suicidou por desgosto de viver, a irmã que foge para a sua casa quando o marido está com os azeites, o tio que se demitiu das dores da família e fugiu para longe.
O amor da sua vida que não teve vida para aceitar.

Não tem pudor nos seus sentimentos e tudo lhe é natural; se os outros não podem fazer e ela pode, faz, tão natural como a vida e a morte; aceita todas as responsabilidades e não reivindica direito algum pois não reconhece o conceito.

As rugas da sua cara sublinham os sacrifícios diários e persistentes. Os cabelos de prata embelezam o seu rosto, cada um deles atestando as dores que pensa serem dos outros.

Compreende todos e não se compreende a si própria.

domingo, 27 de dezembro de 2009

São rosas, Senhor.

A Fada sentou-se na folha verde. Como todos os dias, tinha andado num virote a espalhar Felicidade entre os Homens, desgraçada raça sempre tão triste.

A folha verde era muito maior que ela. Deitou-se e sorriu; estava cansada, sim, mas valia a pena. Tanta gente que era agora mais feliz!

Morreu sem dar por nada, quando a mulher a esmagou com a pequena pá de ferro:

- Estupores dos bichos, dão-me cabo das rosas.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Sorriso


Sorri.
A Vida e o Tempo nada notarão
Mas as rugas da tua cara
Terão outra forma.

Sorri.
O Mal e o Desespero nada notarão
Mas os que virem o sorriso
ficarão com esperança.

Sorri.
Tudo o resto fica na mesma mas
Os que tu amas e te amam a ti
Ficarão aliviados.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Intervalo


Hoje o sol põe-se em silêncio,
A Vida vê a pausa, inquieta,
E a Morte ri-se, lá do Outro lado:
- Querias, não é? Mas hoje não estou para isso.
Os segundos passam, lentos, seguros,
Tudo continua como antes, imutável
mas o Homem chora pérolas mais salgadas
e o seu desespero é mais amargo e duro.
Não há maneira
de fazer estas contas.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Ana


Que chatice, hoje teria de lavar a loiça, o pai andava outra vez com aquele ar inquisitivo.

Os pais eram boas pessoas, claro que eram - mas tão chatos! A vida não se resume a quem lava a loiça, caramba! Porque diabo aqueles dois não eram felizes? Tinham tudo para isso - dinheiro, casa, via-se que gostavam um do outro; mas não eram felizes. Não se entendiam, era o que era, não se percebiam um ao outro.

Isso nunca lhe aconteceria, nunca, nunca! Era coisa decidida desde os 11 anos, quando se apercebeu que nem tudo eram rosas na vida dos pais. De vez em quando, mais frequentemente nos últimos tempos, havia uma expressão ou um silêncio que lhe recordavam essa jura e era renovada. NUNCA teria aquela vida.

Claro, estas coisas têm sempre contra-partidas; teria de lavar a loiça, sim, só depois da ansiedade do pai acalmar é que poderia ir sair com o Rui. O Rui percebia o que ela dizia, ás vezes até percebia o que ela não dizia, era espantoso. Claro que era um bocado mais velho que ela mas que importância tinha isso, além desta compreensão que o João, o Manuel e o Paulo não tinham mesmo? O Rui era diferente, decididamente.

Sorriu. Ia levar a saia preta, dava-lhe aquele ar sofisticado e atraente que o Rui tanto gostava... E a blusa vermelha. Fazia um peito belíssimo, aquela blusa!.

Disse: "deixe estar, mãe, hoje lavo eu a loiça!" e sentiu cravado nas costas o olhar apreciador do pai. A mãe disse "sim" e afastou-se.

Que se passaria com a mãe? Ultimamente andava distante, não parecia bem a mesma. As conversas ao jantar eram estranhas, com ela a chatear o pai por causa de coisas que ele nem percebia, os sapatos do João, o café que não prestava, coisas assim. Nunca teria conversas destas com o Rui - trataria de tudo e depois informava-o e pronto. Era muito mais simples!

A mãe andava um bocado esquisita, realmente. A chatear o pai com os exames do João?!? O João era parvalhão até dizer chega mas sempre tinha tirado boas notas. Aliás, nem poderia ser de outra maneira, a mãe e o pai teriam um ataque se o seu querido Joãozinho tirasse menos de 14 a qualquer coisa... Seria um drama, bem maior do que quando ela tirou 12 a Português. Sim, porque ela era ela e o querido Joãozinho era outra coisa. Tanto melhor, não a chateavam. Se tivesse filhos nunca faria tais distinções, a mãe parece que não vê isto.

Mas ultimamente andava esquisita, não sabia bem dizer porquê. O jantar continuava a ser bom, todos os dias a mãe lhe perguntava pelos deveres, todos os domingos arranjava maneira de introduzir o assunto e lhe perguntava pelo coração... Fazia o que sempre tinha feito, sim, mas havia qualquer coisa diferente.

Ainda não lhe tinha falado do Rui. Será que a mãe tinha adivinhado? Ela parecia que adivinhava as coisas, às vezes até fazia medo. Mas não, quando ela tinha andado com o parvo do João, ela tinha adivinhado e não tinha reagido assim, tinha sido chata como o caraças. Até tinha razão, reconheceu, mas tinha sido tão chata! Agora era diferente. Fazia as mesmas perguntas de sempre mas era muito mais fácil dar a volta - parecia que tinha deixado de adivinhar. Sorriu novamente - ainda bem!

O pai também não andava lá muito bem disposto. Olhava para ela e para o João com uns olhos! Parecia estar à procura de qualquer coisa, um sinal, ela sabia lá. Mas não era coisa boa. Normalmente a mãe percebia e fazia com que ele dirigisse a atenção para outro lado. Mas como a mãe também andava muito esquisita, ultimamente sentia a inquisição do pai muito mais vezes. Mais incomodativa - às vezes até parecia que ele estava desapontado por ela ter boas notas!
Há uma semana que o pai esfregava o cabelo e olhava para a mão a seguir. Caramba, com um cabelo assim porque diabo faz ele aquilo? Uma vez tinha falado com a mãe e ela tinha-lhe dito que o pai tinha medo de ficar careca mas caramba, antes careca que com aquele cabelo.

A culpa era da mãe. Se não andasse tão aluada sabe-se lá com quê, já tinha feito o pai voltar ao normal. Mas não, ela andava assim diferente, a afastar-se com um seco "sim" quando ela até lavava a loiça. Será que se iam separar? Na turma toda só havia 2 pessoas com os pais não separados, ela e a Joana. Se calhar vão-se separar.

Ficou repentinamente angustiada. Sim, deve ser isso. Isso explica porque anda a mãe tão estranha e o pai tão infeliz. Deve ser isso e a culpa era sua, nunca tinha reparado mas ultimamente nem lhes ligava nem nada, não conversava com eles, fugia a sete pés daquela casa.

Era por causa dela que eles se iam separar, tinha a certeza. Tinha de falar com o João, será que ele tinha reparado? Ele era parvo até dizer chega mas percebiam-se bem nas coisas importantes - não se é gémeo à borla, apesar de tudo.

Olhou para o pai. Ele olhava para a mãe com um ar tão infeliz! Caramba, mas porque é que ela não via aquela expressão?

terça-feira, 16 de junho de 2009

Que lugar te faz sentir em casa?


A paz ignora o mundo lá fora e desmente a batalha quotidiana. O mundo é meu, eternamente meu. A quietude entranha-se, o futuro é eterno e eternamente belo, pacífico, acolhedor.

Não há nada lá fora ou se há não faz barulho. O que há cá dentro também não traz ruído e o silêncio instala-se, terno, gentil, carinhoso.

Sem música: é bela também mas ruidosa. Sem risos, que são tanto alegria libertada como choro camuflado. Junto de mim dormem um sono sem sonhos aqueles a quem quero bem e o seu sorriso inconsciente não faz barulho. A paz e a tranquilidade de um tempo sem som preenche-me.

O silêncio descuidado é a minha casa.

domingo, 14 de junho de 2009

Joaquim


O tipo gordo e de cabelo gorduroso - Joaquim Freitas e Oliveira, de seu nome completo - entrou na ambulância absorto em pensamentos. Sentia-se infeliz.

Não era a rapariga desconjuntada que o perturbava, já tinha visto tantos jovens assim! Ao princípio isso nem o deixava dormir, agora estava habituado. Tinha aprendido a não olhar muito de perto, porque os sinais da sua vida também desconjuntada o afectavam muito mais que a morte, a morte era coisa natural. Mas uma vida precocemente desconjuntada, tanta vez gritada nos sinais físicos a que a sua profissão o aconselhava a reparar, isso ainda o perturbava. Aprendeu a mal olhar, era melhor.

Não, Joaquim não se preocupava com o corpo triste a quem certificara a morte. Era a vida que o fazia infeliz, mais concretamente a sua própria vida. As coisas não iam bem em casa. Caramba, será que a Julia não via que estava cansado, desmoralizado numa profissão que não era o que sonhara? Será que não percebia que a obrigação de prover às necessidades de mais 3 pessoas além dele tinha morto os seus sonhos?!?

Sempre a exigir, sempre a exigir... Um dia eram sapatos para os miúdos - a dobrar, que raio, as coisas para os miúdos eram sempre a dobrar! - no outro uma máquina de café... Caramba, que mal tinha a antiga? Há 15 anos que bebiam daquele café, era bom!
E agora, andava silenciosa e de ar absorto, nem sequer o chateava para ir às reuniões de pais. Isto não era natural.

Joaquim acachapou o cabelo com a mão, nunca tinha reparado que era gorduroso. Pegou no pequeno espelho do kit da ambulância e viu: bolas, o cabelo estava horrível! Teria sempre assim o cabelo? Não era falta de banho, tinha lavado a cabeça no dia anterior, lavava sempre a cabeça de 2 em 2 dias pois tinha ouvido dizer que lavar todos os dias levava á calvície. Mas assim não, palavra que a cabeleira parecia que não via sabão há 1 semana. Pensou que devia perguntar ao barbeiro. Eles lá sabem, é a profissão deles - e arrumou o assunto na sua cabeça.

Pensou nos filhos. Os adolescentes deviam dar problemas, toda a gente sabe que os adolescentes dão problemas. Ele tinha dois: porque diabo não lhe davam problemas?!? Sempre tão certinhos, a Ana e o João.

Boas notas. Bem educados, pediam sempre licença antes de abandonar a mesa.
Ajudavam em casa, a Ana muita vez lavava a loiça, o João lavava o carro todos os fins-de-semana.
Bons miúdos. Ele e a Júlia nunca tinham sido chamados à escola, nem na primária nem no liceu, e eles já estavam no fim do liceu. Bons miúdos. Seriam demasiado bons miúdos? Toda a vida ouviu dizer que os adolescentes davam problemas - porque é que os seus não davam?

Se calhar era por causa da Júlia. Era extraordinária, a Júlia. Havia sempre roupa lavada nas gavetas, comida boa e quente a horas certas, certificava-se todos os dias que as crianças tinham os trabalhos de casa feitos. Nem quando ele esteve desempregado lhes faltou nada. O Joaquim não fazia idéia como mas a verdade é que em casa nada mudara nesses meses de aflição: refeições fartas e quentes a horas certas, roupa lavada na gaveta, um sorriso na cara.

Era isso - actualmente faltava-lhe o sorriso. Ela sempre sorrira, sempre! E quando ele esteve desempregado, nunca se tinha apercebido de sapatos ou máquinas de café, ela sempre dera conta do recado. Porque diabo vinha ela agora com estas conversas?!?

Ultimamente ela não sorri. Joaquim sente-se cada vez mais infeliz. Ele está igual ao que sempre foi, porque é que a Júlia não sorri?!?

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Fim


A rapariga lá estava, desconjuntada no passeio público, nuns preparos que nunca acreditaria em vida: uma perna para um lado, a outra para o outro, a saia sem preceito deixava ver as cuecas molhadas por falta de controlo biológico no momento de tensão extrema, um espectáculo triste que nunca teria permitido se o soubesse.

Á sua volta borbulhavam curiosidades, uma coisa para contar no dia seguinte, quando fossem tomar o café da manhã no emprego. Ninguém estava ali para ajudar - a miúda estava claramente para além de qualquer ajuda neste mundo, imóvel e descomposta na praça pública.

A polícia chegou. Afastaram o público em geral, olharam para cima à procura da janela, mediram e anotaram todos os centímetros. Também eles não estavam ali para ajudar, só para tomar conta da ocorrência e descobrir, se possível, se tinha sido desgosto de amor, assassínio ou uns copos a mais.

A ambulância veio. Conferenciaram com a polícia e um tipo gordo e de cabelo gorduroso tomou notas e assinou a certidão de óbito. Mal olhou para ela, tão obviamente morta da queda. Mas também ele não estava ali para ajudar; precisava de lá estar, o ordenado ao fim do mês punha o pão na mesa da família e pagava a educação dos filhos, um par de gémeos alegres e cheios de vivacidade.

Deixaram inscrita na via pública uma silhueta a giz, retrato obsceno da sua pose involuntária.

Tarde na noite, o cão passou por ali. Cheirou e voltou a cheirar, ganiu sabe-se lá porquê, avançou, voltou para trás e por fim levantou a perna e urinou no giz, apagando a sua figura patética e sem defesa.

O mundo ficou mais pobre, nesse dia. Ninguém notou e o cão não sabia, um cão não percebe nada destas coisas. Porque terá ganido o cão?

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Resistência

Durante a infância
O mundo era infinito
e havia esperança

Durante a adolescência
O mundo era enorme
e havia veemência

Durante a juventude
O mundo era grande
e havia de tudo

Durante a idade adulta
O mundo existe apenas
embora já com multa

Durante a velhice porém
o mundo já não existe
e pesa-se sempre a alguém

Ah! O intenso desespero
de já não querer viver
e estar são como um pero!

Pode levar à demência,
este visto permanente
na total impotência

A tristeza essencial
d'uma vida resistente
é que resiste, afinal.