domingo, 8 de março de 2009

A vida é vingativa


O jovem riu-se. Um riso alegre e contagioso, pleno de alegria de viver.

Bem parecido e sensível, agradava ás mulheres; inteligente, culto e discreto, encantava os homens. A vida sorria-lhe, cheia de promessas. A vida gosta de gente forte.

Casou cedo, nunca se arrependeu. A mulher era frágil - precisamente o que o tinha atraído, a utilidade da sua força protectora - o seu bem-estar sugava todas as forças existentes. As horas do dia e o esforço permanente não eram suficientes para a arrancar aos seus medos, às suas preocupações e às suas tristezas - a delicada mulher tudo vivia com uma estranha e triste resistência mas ele, um homem forte, não aguentava aquela consumição. Das duas uma - ou embarcava numa cruzada mortal ou esquecia o assunto. Aquele tem-te não caias dava cabo de si, o que o fazia admirar mais ainda a mulher e a sua serena resistência... Sim, a mulher esgotava-o mas ao mesmo tempo preenchia-o. Nunca se arrependeu, nunca sequer se apercebeu que havia quem lamentasse a sua condição.

Ela morreu cedo. Antes das forças do marido se esgotarem, na sua triste, profunda sensibilidade e serena sabedoria, ela morreu tranquilamente e com tempo suficiente para lhe dizer que o amava. Era a mais pura das verdades e ele nem sonhava que em parte era esse amor o responsável pela sua morte prematura - acima de tudo, ela não queria que ele sofresse e sabia bem o que a ele custava a sua fragilidade. Assim, morreu tranquilamente, com o tempo necessário e suficiente para ele saber que era tão amado - mas sem o desgaste de um prolongado e inglório esforço.

A sua sensibilidade, inteligência e cultura, juntamente com a vivência daquela mulher doce, impediram-no de sorrir à vida como ela lhe sorria a ele. Deixou passar as oportunidades de escalar a escada do sucesso, vendo-as bem mas sempre preso a qualquer coisa que o impedia de subir - talvez porque alguns degraus da escada tinham cara de gente.
A vida é vingativa, deixou de lhe sorrir e passou a persegui-lo - passavam-lhe debaixo dos olhos inúmeras escadas com degraus de olhos tristes.

Já no fim, um velho de faces marcadas e macilentas com olhos tristes e pensativos, o enfermeiro do lar de velhos onde vivia organizou uma pequena festa de aniversário às suas próprias custas. Foi com certo esforço porque teve de poupar o curto orçamento durantes 2 meses mas gostava do velhote de olhos profundos e sorriso fácil.

Nessa tarde, apagou as velas do bolo oferecido, olhou para o enfermeiro bondoso e riu-se. Um riso divertido e contagioso, que fez sorrir os companheiros e alegrou o enfermeiro. Disse-lhe: "Meu bom amigo, a vida é uma tipa invejosa e ciumenta! Parvos são os homens que julgam que a podem domar". Riu outra vez com o riso cristalino que alegrava as caras desdentadas dos companheiros.

Morreu serenamente nessa noite. A mulher tinha morrido há muito tempo, o filho tinha a sua própria vida dorida, o enfermeiro enredava-se em amores pela criada do hotel ao lado. Amizade era um sonho esquecido da juventude.
Morreu sozinho, como toda a gente.

A Vida continua a sorrir aos jovens alegres. São inconscientes, os jovens - não têm contactos com quem os podia avisar que a vida é vingativa, se calhar ela faz de propósito.