O carro chiou, as rodas a protestarem em voz alta a curva
apertada.
O bicho, coitado, depois de tanto tempo a perceber que era
mais seguro atravessar na passadeira e mais tempo ainda para descobrir que a
passadeira não era sempre igual (umas vezes tinha um apito que fazia parar as
coisas - embora se mantivessem a rugir baixinho, próximo - outras vezes nem
parecia que tinha riscas) assustou-se. Deu um salto para a frente e foi por um
cabelo que o carro não lhe passou por cima.
Esqueceu imediatamente o sucedido, tinha a certeza que tinha
atravessado as riscas na altura certa, a coisa é que não se comportara como
devia. Não interessava, havia assuntos muito importantes a considerar, como por
exemplo estar na altura do gordo do restaurante vir por os sacos na rua.
Cheiravam tão bem, aqueles sacos! Era estúpido meterem
aquilo nas caixas-que-nunca-se-abrem mas as pessoas são muito estranhas, não
valia a pena pensar nisso. O gordo do restaurante também cheirava bem, a molho
de carne, manteiga e outras coisas. Além disso tinha sempre comida para lhe
dar, era importante estar à porta quando vinha guardar os sacos que cheiravam
bem nas caixas-que-nunca-se-abrem.
Ultimamente o gordo do restaurante tinha também um cheiro
estranho, um odor desagradável que o cão não identificava e que lhe trazia
inquietação; mas havia sempre comida de modo que continuava a vir. Era muito
importante, a comida, era muito, muito importante.
Chegou à porta e sentou-se. O gordo havia de vir.
Olhou em volta, um pombo saltitava a meia distância. Não se
levantou, já sabia que não o apanhava; os pombos eram muito interessantes,
nunca tinha apanhado nenhum mas de certeza que saberiam bem.
Uma mulher andava muito depressa em sua direcção - desviou-se
para próximo da parede para ela passar, as pessoas eram muito estranhas e
algumas eram perigosas, era muito importante estar com atenção.
Estava com fome, o tempo estava certo. O gordo havia de vir,
com comida.
A porta abriu-se e o gordo veio, com dois grandes sacos que
colocou nas caixas-que-nunca-se-abrem. Os sacos cheiravam bem, muito bem, como
sempre, era uma pena aquilo das caixas-que-nunca-se-abrem.
O gordo entrou e tornou a sair com a comida. Deitou-a para
cima de um papel, como sempre e a comida cheirava bem, muito bem. Comeu tudo,
delicioso, mesmo delicioso, é pena não haver mais mas abanou o rabo em
agradecimento e o gordo sorriu. O odor desagradável estava mais forte,
espalhava maior inquietação, o gordo estava menos gordo, teria alguma coisa a
ver?...
O gordo voltou a entrar e a porta fechou-se. Era tempo de ir
ao jardim perseguir os pombos e ouvir o velhote de casaco preto a rir-se.
Havia três sítios com riscas para passar e no fundo dele a
inquietação levantou-se: as coisas portar-se-iam bem?
2012
Sem comentários:
Enviar um comentário
Regateios