domingo, 3 de junho de 2012

A dança

Dançai, dançai
A dança da alegria
No parque sem crianças
Na terra vazia

Dançai, dançai
A dança da vitória
No sonho sem gente
Na morte sem história

Dançai, dançai
A dança dos vivos
Na fonte sem água
Na jaula dos cativos

Dançai, dançai
A dança dos clamores
No chão sem pedras
No bosque sem flores

Dançai, dançai
Com energia
O futuro já não vem
Venha pois a magia

sábado, 26 de maio de 2012

Caca de cão

Sentada no banco do jardim, chorava.
As lágrimas caiam em fio sem soluços. Nada as impedia, as mãos enclavinhadas no colo na posição centenária de estoicismo.

A postura era rígida mas discreta: nenhum dos passantes lhe dirigiu um segundo olhar. 
A silhueta madura não atraía os jovens e o drama passava despercebido aos outros, aos solidários como aos abutres; talvez fosse essa a razão pela qual a postura se lhe tinha tornado familiar, uma defesa contra intromissões inconsequentes.

Os olhos abertos perscrutavam sem ver a linha do horizonte, uma coisa feia de prédios velhos e sujos. Não a via, os olhos só viam o que se tinha perdido, sem esperança e sem remédio. Sentia-se velha e trôpega, no dia do seu meio centenário
O seu tempo fora julgado sem préstimo, toda uma maneira de proceder, um conhecimento e uma experiência, toda uma maneira de estar, todas as escolhas da sua vida, tudo ajuizado sem utilidade. Como caca de cão.

Quando não há capacidade para todos no bote, lança-se ao mar os que pesam mais do que o que valem na travessia. Tinha sido lançada ao mar e a pena por si própria era maior do que alguma vez pensara possível.

O pombo aproximou-se, o olho vermelho a avaliar a possibilidade de haver pão naquela figura pesada. Voltou a cabeça para ver com o outro olho, igualmente vermelho de saúde; mas não havia dúvida que dali nada viria, era demasiado agourenta, demasiado escura, a figura.

As lágrimas caiam em fio sem soluços. Nem viu o pombo que, também ele, a ajuizara sem valor.

domingo, 20 de maio de 2012

Férias

Queria ir para um deserto desértico
Passar umas boas férias
Sem ver ninguém nem ouvir nada
Ao lado do mundo mas sem estar fora dele.
Queria o sossego e o silêncio
Do deserto temporário, a pedido
Uma coisa assim tipo time sharing.
Iria para lá por uns tempos
Gozar umas férias
Da vida barulhenta;
Escutaria o silêncio
Viveria o vazio
E choraria os males todos
Em lágrimas silenciosas.
Quem sabe assim
Ficaria consertado
O meu cansaço!
Poderia maldizer a vida
Sem ela me castigar
E teria saudades do mundo
Sem ele me esmagar.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Inocência

A alegria das crianças é dolorosa
Como as crianças riem, santo Deus!
Com que que inconsciência,
Com que inocência,
Sentem permanente o momento alegre!
E nós sabendo que amanhã vai chover,
Sabendo que amanhã o jardim estará fechado,
Nós sabendo que amanhã alguém vai morrer,
Ou pior ainda, vai viver desesperado.
Mas as crianças riem com a certeza
Que fará sol e será possível brincar
E que estarão no jardim, outra vez, amanhã!
E riem com a boca toda aberta,
E na sua alegria cabe o mundo todo
E cabem todos os tempos
E cabe toda a gente.
As gargalhadas cristalinas,
Os olhos redondos de alegria,
Os gestos soltos e abrangentes...
Doem-me fundo, fundo, magoam,
Como se aquilo que a vida me ensinou,
Fosse uma traição à sua existência.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A contingência da Vida

O que eu queria era que não fosse hoje

Podia ser amanhã ou ontem, tanto faz,

Mas que não fosse hoje, nem agora.

Era o que eu queria, se pudesse:

Porque hoje está sol

Um dia luminoso e claro

E eu não sei onde estou

Nem sei para onde vou

Quanto mais por onde vou.

Se não fosse hoje

Eu saberia pela certa

Teria imensas teorias

Que explicariam muito bem

Estar eu onde estivesse.

Com toda a certeza

Se fosse amanhã eu saberia

Porque é que hoje estou aqui

Sem saber onde é aqui;

E se fosse ontem o hoje não existia

E eu não estaria aqui seguramente.