domingo, 14 de junho de 2009

Joaquim


O tipo gordo e de cabelo gorduroso - Joaquim Freitas e Oliveira, de seu nome completo - entrou na ambulância absorto em pensamentos. Sentia-se infeliz.

Não era a rapariga desconjuntada que o perturbava, já tinha visto tantos jovens assim! Ao princípio isso nem o deixava dormir, agora estava habituado. Tinha aprendido a não olhar muito de perto, porque os sinais da sua vida também desconjuntada o afectavam muito mais que a morte, a morte era coisa natural. Mas uma vida precocemente desconjuntada, tanta vez gritada nos sinais físicos a que a sua profissão o aconselhava a reparar, isso ainda o perturbava. Aprendeu a mal olhar, era melhor.

Não, Joaquim não se preocupava com o corpo triste a quem certificara a morte. Era a vida que o fazia infeliz, mais concretamente a sua própria vida. As coisas não iam bem em casa. Caramba, será que a Julia não via que estava cansado, desmoralizado numa profissão que não era o que sonhara? Será que não percebia que a obrigação de prover às necessidades de mais 3 pessoas além dele tinha morto os seus sonhos?!?

Sempre a exigir, sempre a exigir... Um dia eram sapatos para os miúdos - a dobrar, que raio, as coisas para os miúdos eram sempre a dobrar! - no outro uma máquina de café... Caramba, que mal tinha a antiga? Há 15 anos que bebiam daquele café, era bom!
E agora, andava silenciosa e de ar absorto, nem sequer o chateava para ir às reuniões de pais. Isto não era natural.

Joaquim acachapou o cabelo com a mão, nunca tinha reparado que era gorduroso. Pegou no pequeno espelho do kit da ambulância e viu: bolas, o cabelo estava horrível! Teria sempre assim o cabelo? Não era falta de banho, tinha lavado a cabeça no dia anterior, lavava sempre a cabeça de 2 em 2 dias pois tinha ouvido dizer que lavar todos os dias levava á calvície. Mas assim não, palavra que a cabeleira parecia que não via sabão há 1 semana. Pensou que devia perguntar ao barbeiro. Eles lá sabem, é a profissão deles - e arrumou o assunto na sua cabeça.

Pensou nos filhos. Os adolescentes deviam dar problemas, toda a gente sabe que os adolescentes dão problemas. Ele tinha dois: porque diabo não lhe davam problemas?!? Sempre tão certinhos, a Ana e o João.

Boas notas. Bem educados, pediam sempre licença antes de abandonar a mesa.
Ajudavam em casa, a Ana muita vez lavava a loiça, o João lavava o carro todos os fins-de-semana.
Bons miúdos. Ele e a Júlia nunca tinham sido chamados à escola, nem na primária nem no liceu, e eles já estavam no fim do liceu. Bons miúdos. Seriam demasiado bons miúdos? Toda a vida ouviu dizer que os adolescentes davam problemas - porque é que os seus não davam?

Se calhar era por causa da Júlia. Era extraordinária, a Júlia. Havia sempre roupa lavada nas gavetas, comida boa e quente a horas certas, certificava-se todos os dias que as crianças tinham os trabalhos de casa feitos. Nem quando ele esteve desempregado lhes faltou nada. O Joaquim não fazia idéia como mas a verdade é que em casa nada mudara nesses meses de aflição: refeições fartas e quentes a horas certas, roupa lavada na gaveta, um sorriso na cara.

Era isso - actualmente faltava-lhe o sorriso. Ela sempre sorrira, sempre! E quando ele esteve desempregado, nunca se tinha apercebido de sapatos ou máquinas de café, ela sempre dera conta do recado. Porque diabo vinha ela agora com estas conversas?!?

Ultimamente ela não sorri. Joaquim sente-se cada vez mais infeliz. Ele está igual ao que sempre foi, porque é que a Júlia não sorri?!?

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