Joana ria, os dentes certinhos à
mostra. Tinha descoberto muito cedo, na face menos severa do pai e nos lábios
menos descaídos da mãe, que aquela alegria desorientava quem a via e levava as
pessoas a serem amáveis.
Portanto, Joana ria. Mesmo quando
dentro de si tudo se encolhia e chorava, Joana ria; tinha aprendido muito bem a
lição e nem tinha demorado muito tempo – aos quatro anos já Joana ria aquele
seu riso especial.
Foi por causa disso que mesmo nos
tempos difíceis e sem dinheiro para nada Joana tinha sempre preferido passar
pior do que faltar ao dentista – os dentes tinham de ser brancos e certos se
não o riso, em vez de atrair, repelia. Não há pior que dentes amarelos ou
tortos a olharem para nós, cogitava ela.
A par do domínio exímio e cada
vez mais fácil da técnica, Joana tinha também aprendido a reconhecer aqueles
que dominavam outras técnicas de manipulação pessoal, como um sorriso quente
com palavras agradáveis e inconsequentes; ela ia à luta e retribuía com o riso
aberto e gargalhante que normalmente empatava a situação.
É muito difícil cortar sem
piedade um riso aberto, com os dentes todos à mostra. Ela sabia, toda a vida
batalhara dessa forma... Mesmo quando perdia, as perdas eram controladas pois
quem ganhava tinha tendência a deixar uma pequena porta onde o riso podia ainda
existir – é realmente muito difícil ao Homem aniquilar um riso aberto.
Joana não via o que o seu riso
traía a honestidade, a franqueza de uma alegria genuína. Também não reparava no
que ficava para trás quando ganhava alguma coisa; acreditava sinceramente que
todas as pessoas o fariam, se pudessem – acreditava que só quem não pode não
faz, seja o que for, desde que pessoalmente vantajoso. E Joana, com aquele riso
especial, podia.
Na noite em que foi assaltada,
Joana defendeu-se; disse isto e aquilo, riu-se com todos os dentes brancos e
certinhos à mostra, tentou por todos os meios que conhecia trazer o ladrão à
Humanidade que dominava.
Mas o homem estava demasiado sofrido,
demasiado pisado, demasiado triste. Mesmo sem nunca ter conhecido a Joana, os
olhos do homem reconheceram o riso de dentes brancos e os ouvidos do homem
reconheceram o riso cristalino; toda uma fúria incontrolável tomou posse dele,
o sofrimento a uivar por vingança, o homem cambaleou ao recordar os tempos em
que tinha acreditado na vida, nuns olhos semiabertos e num riso largo e cheio;
e a dor que o percorria era demasiada – o assalto era por um dinheirito para o
jantar mas agora já só queria aniquilar a dor que lhe apertava o peito. A
Humanidade em que Joana nunca pensara revoltou-se.
Joana morreu.
A polícia estranhou o riso aberto
que o cadáver ostentava; isso mais o facto da carteira conter os 50€ que o
registo do Multibanco demonstrava ter sido levantado à saída do emprego provava
que o crime não fora por dinheiro.
Na morte, o riso de Joana
traiu-a; continuam à procura de alguém que ela conhecesse.
Agosto 2012
Agosto 2012
Sem comentários:
Enviar um comentário
Regateios