quarta-feira, 17 de junho de 2009

Ana


Que chatice, hoje teria de lavar a loiça, o pai andava outra vez com aquele ar inquisitivo.

Os pais eram boas pessoas, claro que eram - mas tão chatos! A vida não se resume a quem lava a loiça, caramba! Porque diabo aqueles dois não eram felizes? Tinham tudo para isso - dinheiro, casa, via-se que gostavam um do outro; mas não eram felizes. Não se entendiam, era o que era, não se percebiam um ao outro.

Isso nunca lhe aconteceria, nunca, nunca! Era coisa decidida desde os 11 anos, quando se apercebeu que nem tudo eram rosas na vida dos pais. De vez em quando, mais frequentemente nos últimos tempos, havia uma expressão ou um silêncio que lhe recordavam essa jura e era renovada. NUNCA teria aquela vida.

Claro, estas coisas têm sempre contra-partidas; teria de lavar a loiça, sim, só depois da ansiedade do pai acalmar é que poderia ir sair com o Rui. O Rui percebia o que ela dizia, ás vezes até percebia o que ela não dizia, era espantoso. Claro que era um bocado mais velho que ela mas que importância tinha isso, além desta compreensão que o João, o Manuel e o Paulo não tinham mesmo? O Rui era diferente, decididamente.

Sorriu. Ia levar a saia preta, dava-lhe aquele ar sofisticado e atraente que o Rui tanto gostava... E a blusa vermelha. Fazia um peito belíssimo, aquela blusa!.

Disse: "deixe estar, mãe, hoje lavo eu a loiça!" e sentiu cravado nas costas o olhar apreciador do pai. A mãe disse "sim" e afastou-se.

Que se passaria com a mãe? Ultimamente andava distante, não parecia bem a mesma. As conversas ao jantar eram estranhas, com ela a chatear o pai por causa de coisas que ele nem percebia, os sapatos do João, o café que não prestava, coisas assim. Nunca teria conversas destas com o Rui - trataria de tudo e depois informava-o e pronto. Era muito mais simples!

A mãe andava um bocado esquisita, realmente. A chatear o pai com os exames do João?!? O João era parvalhão até dizer chega mas sempre tinha tirado boas notas. Aliás, nem poderia ser de outra maneira, a mãe e o pai teriam um ataque se o seu querido Joãozinho tirasse menos de 14 a qualquer coisa... Seria um drama, bem maior do que quando ela tirou 12 a Português. Sim, porque ela era ela e o querido Joãozinho era outra coisa. Tanto melhor, não a chateavam. Se tivesse filhos nunca faria tais distinções, a mãe parece que não vê isto.

Mas ultimamente andava esquisita, não sabia bem dizer porquê. O jantar continuava a ser bom, todos os dias a mãe lhe perguntava pelos deveres, todos os domingos arranjava maneira de introduzir o assunto e lhe perguntava pelo coração... Fazia o que sempre tinha feito, sim, mas havia qualquer coisa diferente.

Ainda não lhe tinha falado do Rui. Será que a mãe tinha adivinhado? Ela parecia que adivinhava as coisas, às vezes até fazia medo. Mas não, quando ela tinha andado com o parvo do João, ela tinha adivinhado e não tinha reagido assim, tinha sido chata como o caraças. Até tinha razão, reconheceu, mas tinha sido tão chata! Agora era diferente. Fazia as mesmas perguntas de sempre mas era muito mais fácil dar a volta - parecia que tinha deixado de adivinhar. Sorriu novamente - ainda bem!

O pai também não andava lá muito bem disposto. Olhava para ela e para o João com uns olhos! Parecia estar à procura de qualquer coisa, um sinal, ela sabia lá. Mas não era coisa boa. Normalmente a mãe percebia e fazia com que ele dirigisse a atenção para outro lado. Mas como a mãe também andava muito esquisita, ultimamente sentia a inquisição do pai muito mais vezes. Mais incomodativa - às vezes até parecia que ele estava desapontado por ela ter boas notas!
Há uma semana que o pai esfregava o cabelo e olhava para a mão a seguir. Caramba, com um cabelo assim porque diabo faz ele aquilo? Uma vez tinha falado com a mãe e ela tinha-lhe dito que o pai tinha medo de ficar careca mas caramba, antes careca que com aquele cabelo.

A culpa era da mãe. Se não andasse tão aluada sabe-se lá com quê, já tinha feito o pai voltar ao normal. Mas não, ela andava assim diferente, a afastar-se com um seco "sim" quando ela até lavava a loiça. Será que se iam separar? Na turma toda só havia 2 pessoas com os pais não separados, ela e a Joana. Se calhar vão-se separar.

Ficou repentinamente angustiada. Sim, deve ser isso. Isso explica porque anda a mãe tão estranha e o pai tão infeliz. Deve ser isso e a culpa era sua, nunca tinha reparado mas ultimamente nem lhes ligava nem nada, não conversava com eles, fugia a sete pés daquela casa.

Era por causa dela que eles se iam separar, tinha a certeza. Tinha de falar com o João, será que ele tinha reparado? Ele era parvo até dizer chega mas percebiam-se bem nas coisas importantes - não se é gémeo à borla, apesar de tudo.

Olhou para o pai. Ele olhava para a mãe com um ar tão infeliz! Caramba, mas porque é que ela não via aquela expressão?

terça-feira, 16 de junho de 2009

Que lugar te faz sentir em casa?


A paz ignora o mundo lá fora e desmente a batalha quotidiana. O mundo é meu, eternamente meu. A quietude entranha-se, o futuro é eterno e eternamente belo, pacífico, acolhedor.

Não há nada lá fora ou se há não faz barulho. O que há cá dentro também não traz ruído e o silêncio instala-se, terno, gentil, carinhoso.

Sem música: é bela também mas ruidosa. Sem risos, que são tanto alegria libertada como choro camuflado. Junto de mim dormem um sono sem sonhos aqueles a quem quero bem e o seu sorriso inconsciente não faz barulho. A paz e a tranquilidade de um tempo sem som preenche-me.

O silêncio descuidado é a minha casa.

domingo, 14 de junho de 2009

Joaquim


O tipo gordo e de cabelo gorduroso - Joaquim Freitas e Oliveira, de seu nome completo - entrou na ambulância absorto em pensamentos. Sentia-se infeliz.

Não era a rapariga desconjuntada que o perturbava, já tinha visto tantos jovens assim! Ao princípio isso nem o deixava dormir, agora estava habituado. Tinha aprendido a não olhar muito de perto, porque os sinais da sua vida também desconjuntada o afectavam muito mais que a morte, a morte era coisa natural. Mas uma vida precocemente desconjuntada, tanta vez gritada nos sinais físicos a que a sua profissão o aconselhava a reparar, isso ainda o perturbava. Aprendeu a mal olhar, era melhor.

Não, Joaquim não se preocupava com o corpo triste a quem certificara a morte. Era a vida que o fazia infeliz, mais concretamente a sua própria vida. As coisas não iam bem em casa. Caramba, será que a Julia não via que estava cansado, desmoralizado numa profissão que não era o que sonhara? Será que não percebia que a obrigação de prover às necessidades de mais 3 pessoas além dele tinha morto os seus sonhos?!?

Sempre a exigir, sempre a exigir... Um dia eram sapatos para os miúdos - a dobrar, que raio, as coisas para os miúdos eram sempre a dobrar! - no outro uma máquina de café... Caramba, que mal tinha a antiga? Há 15 anos que bebiam daquele café, era bom!
E agora, andava silenciosa e de ar absorto, nem sequer o chateava para ir às reuniões de pais. Isto não era natural.

Joaquim acachapou o cabelo com a mão, nunca tinha reparado que era gorduroso. Pegou no pequeno espelho do kit da ambulância e viu: bolas, o cabelo estava horrível! Teria sempre assim o cabelo? Não era falta de banho, tinha lavado a cabeça no dia anterior, lavava sempre a cabeça de 2 em 2 dias pois tinha ouvido dizer que lavar todos os dias levava á calvície. Mas assim não, palavra que a cabeleira parecia que não via sabão há 1 semana. Pensou que devia perguntar ao barbeiro. Eles lá sabem, é a profissão deles - e arrumou o assunto na sua cabeça.

Pensou nos filhos. Os adolescentes deviam dar problemas, toda a gente sabe que os adolescentes dão problemas. Ele tinha dois: porque diabo não lhe davam problemas?!? Sempre tão certinhos, a Ana e o João.

Boas notas. Bem educados, pediam sempre licença antes de abandonar a mesa.
Ajudavam em casa, a Ana muita vez lavava a loiça, o João lavava o carro todos os fins-de-semana.
Bons miúdos. Ele e a Júlia nunca tinham sido chamados à escola, nem na primária nem no liceu, e eles já estavam no fim do liceu. Bons miúdos. Seriam demasiado bons miúdos? Toda a vida ouviu dizer que os adolescentes davam problemas - porque é que os seus não davam?

Se calhar era por causa da Júlia. Era extraordinária, a Júlia. Havia sempre roupa lavada nas gavetas, comida boa e quente a horas certas, certificava-se todos os dias que as crianças tinham os trabalhos de casa feitos. Nem quando ele esteve desempregado lhes faltou nada. O Joaquim não fazia idéia como mas a verdade é que em casa nada mudara nesses meses de aflição: refeições fartas e quentes a horas certas, roupa lavada na gaveta, um sorriso na cara.

Era isso - actualmente faltava-lhe o sorriso. Ela sempre sorrira, sempre! E quando ele esteve desempregado, nunca se tinha apercebido de sapatos ou máquinas de café, ela sempre dera conta do recado. Porque diabo vinha ela agora com estas conversas?!?

Ultimamente ela não sorri. Joaquim sente-se cada vez mais infeliz. Ele está igual ao que sempre foi, porque é que a Júlia não sorri?!?