quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Calcutá


A Maria era uma rapariga tranquila.

Por qualquer genética razão, era difícil o sangue ferver-lhe nas veias; estranho que possa parecer, controlo era uma palavra desconhecida para ela. Não precisava - mantinha-se sempre calma, reservada, racional e pacífica, fosse qual fosse a situação. Não havia nada que penetrasse a carapaça da sua tranquilidade, nunca havia necessidade de se controlar porque nunca a sua natureza clamava por acção.

Os outros julgavam-na fria e distante mas estavam enganados; ela sentia tudo muito bem, metia-se na pele de todos e sentia-lhes as dores, dúvidas e desesperos; tal coisa não lhe afectava o comportamento calmo e pacífico, antes o ampliava pela compreensão da diversidade do sentir.

Uma vez, uma suposta amiga de longa data rompera com ela porque "Eu não aceito tamanha passividade, é necessário lutar contra a iniquidade, quem nada faz é conivente!"; nessa altura, pela primeira e última vez, tentou explicar a sua natureza: "Teresa, se a lei for olho por olho, acabamos num mundo de cegos!"*. Não resultou, a Teresa afastou-se zangada e o mundo de Maria ficou mais solitário.

Maria sabia que se de facto fosse como gostaria de ser não teria a vida que tinha, teria ido para Calcutá, adoptaria vinte crianças tristes ou passaria o dia a ajudar doentes solitários; assumia o seu egoísmo tentando, dentro dele, ser o melhor possível. O lamento de não ser o que gostaria convivia diariamente com ela, de forma que aprendera a ignorá-lo embora consciente da sua presença.

Maria era tranquila mas não espalhava tranquilidade, antes espalhava inquietação. Quando alguém lhe fazia notar que estava sol, instintivamente ela respondia: "- Mas além está a chover...". Se alguém morria ela lembrava-se dos bebés, se alguém nascia ela lembrava-se dos velhos; andava assim sempre em contra-ciclo, uma coisa muito irritante.

Toda a gente considerava Maria um rochedo, uma pedra firmemente ancorada que nada podia abalar e que por isso mesmo, era um cais seguro; ela própria se considerava assim. Não lembrava a ninguém nunca que alguma vez Maria necessitasse de ajuda, Maria e necessidade de ajuda eram naturalmente exclusivos, como o sol e a chuva... Maria era uma forasteira da vida, incólume, sem cor, alheia, sem cheiro ou ânsia.

Uma vez Maria balançou, num conjunto de circunstâncias que conseguiu a improvável combinação que premia o botão escondido; ninguém realmente percebeu a gravidade do balanço, embora percebessem a estranhíssima falta de tranquilidade. Os dias passaram, a tranquilidade voltou, os mais próximos sossegaram aliviados e só Maria se deu conta dos estragos. Tranquila novamente, colocou-os na mesma categoria das crianças tristes e por adoptar... Uma coisa mais a ignorar.

Maria não era simpática, bonita ou culta; era a sua capacidade de apreender os outros que os atraía magneticamente quando em necessidade e os afastava quando andavam felizes, nessa altura era desagradável a proximidade, dada a inquietação do contra-ciclo. Maria, tranquila, compreendia tanto a necessidade como o desconforto, compreendia a atracção e a repulsa. Maria era dos outros, não dela própria - um pequeno preço a pagar pela recusa em ir para Calcutá, era barato.

Tinha com ela outras presenças, gente que não necessitava dela, gente que sem ruído a acarinhava, pensava nela, dava-lhe prioridade, gente que sacrificava o natural egoísmo e comodidade por ela, gente que a Amava sem querer nada em troca. Maria dava por isto, sorria de vez em quando e tinha consciência de que os amava a eles também, com um amor entranhado que nada tinha a ver com o resto da sua vida... Mas Calcutá erguia-se durante a noite.

Houve um dia em que Maria, tranquilamente, armou um teatro de vida real; chamou nomes à Francisca, disse-lhe que tinha ficado à espera dela, que a sua ausência a tinha marcado, que a Francisca devia ter vergonha em magoar assim quem lhe queria bem e contava com ela; a Francisca, coitada, naquele arrazoado atacante e inesperado lá arranjou forças para remar a sua vida para a frente, considerou que a Maria era afinal um cais pouco seguro e seguiu.
Maria ficou contente e triste: contente porque a Francisca zarpou independente e com força, triste porque a liberdade da Francisca tinha sido adquirida por logro. Maria achava que a manipulação de pessoas era horrivelmente reprovável. "As pessoas", achava ela, "devem ser soberanas. Devem fazer sempre aquilo que querem, porque evolução significa que as pessoas querem as coisas certas. Tudo o mais é engano e decepção". Acreditava firmemente nisso, o que lhe revolvia o estômago e mordia a alma, quando sucumbia à tentação - tão fácil! - de manipular alguém. O estômago rugia, a alma fremia, escondia-se atrás da intenção pura mas tinha pesadelos com crianças de barriga grande e olhos ainda maiores.

Às vezes, a Maria ficava noite dentro a ver um filme de acção. Via o herói a deitar uma bomba e chorava (aquilo mata uns putos de certeza), via o polícia a prender o traficante e chorava (ninguém nasce assim, coitado do miúdo, sem mãe nem pai nem amigos), via o agente secreto a namorar uma bela e chorava (bolas que isto não é vida para ninguém, esta rapariga não sonhou com isto aos 12 anos, de certeza), via o sem abrigo a chamar nomes à polícia e chorava (em outras circunstâncias qualquer de nós podia ali estar!), via isto e aquilo, Calcutá rugia e ela chorava.
Por estas e outras, Maria só gostava de ver filmes sozinha, as suas lágrimas afligiam desnecessariamente os outros que nem compreendiam como ela depois, firmemente, ignorava tudo e retomava a sua tranquilidade inquieta.

Maria não tinha amigos, ninguém suportava durante muito tempo a sua inquietação. Ao fim de um tempo o contra-ciclo começava a cobrar paciência e tranquilidade aos outros e esse era o princípio do fim. Ela sofria de cada vez que constatava o facto - ao longo dos anos o abandono repetia-se sem que nunca quem se afastava se despedisse. Às vezes voltavam, fugidios, pois as Sortes tinham sido maldosas e ela era um Porto de entrada franca; mas era sempre uma hospedagem passageira de quem procura uma noite de sono seguro para prosseguir o seu caminho. Maria compreendia e triste, pagava o dízimo a Calcutá.

Já com muitos anos, Maria atirou-se da ponte. Até hoje, ninguém compreende tal loucura, uma balzaquiana tão tranquila! Houve burburinho, claro, gente a congeminar amores infelizes, humores, hormonas, segredos, menopausa, genética desiquilibrada... A ninguém ocorreu Calcutá. Quem chegou mais próximo foi um miúdo que mal a conhecia, ao dizer alto (as crianças podem não ter a noção do decoro mas têm a noção do óbvio) no funeral:

- Ó Mamã, não chores! Eu acho que ela estava sempre triste, agora já não está triste, isso é bom, não é?

É. Calcutá cobra as suas dívidas mas dívidas pagas são paz de espírito.
*Dalai Lama

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Cenário urbano


A porta do carro da frente abriu-se e uma jovem muito bem vestida e de botas com salto de agulha saiu furiosa e começou a insultar o condutor da frente; da boca bem pintada saíam palavrões dignos de um carroceiro irritado. O condutor da frente também saiu do carro, um homem maduro e com cara de poucos amigos.

A rapariga dos saltos de agulha deu um pontapé na roda do carro da frente e o homem avisou-a:

- Ó grande vaca, se pensas que eu não bato em mulheres, andas enganada!

Joana abanou a cabeça, atónita. O João riu-se.

- Achas que se vão pegar à pancada?
- Sei lá! Mas ela bem merecia...
- Mas é uma rapariga!
- E então?
- Tu eras capaz de me bater?!
- A ti não mas não é por seres rapariga, é porque não te portas assim.
- Queres dizer que se fosses tu ali à frente batias-lhe?
- Claro! Ela deu um pontapé no carro, não deu?
- Foi no carro, não foi no homem...
- É a mesma coisa.

O semáforo mudou de cor e imediatamente se fez ouvir a cacofonia das buzinas, protestando contra a cena que antes entretivera os condutores mas que agora lhes impedia a passagem e atrasava o destino.

Joana sentia um frio desagradável a escorrer pela espinha mas não disse mais nada. Não queria saber mais.